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Cobrir-se de cinzas

Vestir-se com pano de saco e sentar-se nas cinzas é uma das expressões que acompanham diversas passagens proféticas do Antigo Testamento. Trata-se de um apelo de conversão profunda que desafia o coração humano – lugar mais recôndito da pessoa – a se abrir a radicais mudanças. No tempo em que viviam os profetas, era esse o gesto de reconhecimento da condição de pecador, que havia se distanciado da verdade, da justiça e do amor. Vestir-se com o pano mais grosseiro e áspero da época, cobrir a cabeça com cinzas, ou nela se sentar, desenha um caminho novo a ser percorrido por dinâmicas novas, com força de restauração.

O serviço educativo dos profetas do Antigo Testamento era alertar o povo de Deus para os descompassos que conduziam a sociedade a fracassos irreparáveis. Buscava, com argumentos e reflexões, convencer as pessoas de que somente mudanças profundas de mentalidade e de conduta poderiam conduzir a novo caminho de reestruturação da sociedade.

O fracasso social que ainda hoje ameaça a humanidade continua a ser resultado da conduta cidadã inadequada e do afastamento de Deus. É consequência da soberba e da ilusória posse da verdade – procedimentos que dão origem a mentiras e a falsos juízos sustentados por argumentos perversos, na contramão da verdade que liberta. E o preço que se paga é muito alto. Cada indivíduo fala de um lugar só seu e, por isso mesmo, limitado, estreitado por preconceitos, ódios e interesses espúrios.

Uma avalanche de mentiras impostas como verdades, com origem na soberba e em vinganças contra aqueles que apresentam argumentos sinceros, podem precipitar a sociedade em uma condição de Babel. Impede a necessária retomada de rumos e compromete tragicamente a força de quem busca agir com bondade. Não há, pois, outro caminho, a não ser o da conversão, que tem na humildade e no confronto com a verdade sua condição primeira.

Por isso, um grande desafio é vencer a prepotência, pois os orgulhosos não se convertem. Estão sempre convencidos de que fazem as melhores escolhas, na maior parte das vezes, sob a hegemonia de idolatrias como a do dinheiro e do poder, guiados perversamente pelo ódio e pela vingança que se instalam no coração dos enfraquecidos. Fadados ao fracasso, ancoram-se em mentiras ditas sobre a reputação dos outros ou pelo uso de mecanismos que encobrem o mal, apresentados sob a capa de um suposto bem.

É preciso voltar ao ponto de partida que se perdeu nesse caos sombrio do comprometimento de todo o princípio moral. A luta por uma sociedade justa e ancorada na fraternidade solidária só será possível – têm razão os profetas em seu serviço educativo – quando se aceitar o caminho de volta para Deus. Sem essa dinâmica de retorno, de conversão, não há conserto. Nenhuma sociedade encontrará o caminho novo que precisa. Passo a passo, pagando altos preços, a humanidade caminhará para a desorientação e delinquência, sacrificando a verdade a todo preço e desconhecendo o sentido de respeitar a honra e a sacralidade de toda pessoa.

Ainda que o perdão seja dado, a impunidade não pode contemplar aqueles que conduzem a sociedade a esse caos.  Que no universo das redes sociais, particularmente, se mostram perversos, desesperados, construindo mentiras, contaminando a verdade por meio de análises comprometidas com interesses inconfessáveis. Atacam e desmoralizam pessoas e instituições para se proteger das próprias mentiras. Pretendem vencer, não com a força de quem busca estar com Deus e se orienta por seus mandamentos, mas com o fermento da maldade.

Este tempo em que se vivencia a Quaresma é oportuno para refletir sobre todo esse mal que tem deteriorado o coração humano, aprisionando-o em ilusões e práticas que aceleram os descompassos no funcionamento das famílias e das sociedades, com o domínio diabólico dos comportamentos. Delicadeza de Deus, a Quaresma na liturgia vivida pela Igreja, é insistente convite e oferta de possível e necessária revitalização espiritual.

Vestir-se de sacos e sentar-se nas cinzas é acolher o convite à conversão, é reconhecer a condição limitada e pecadora própria de todo o ser humano, identificar o que precisa ser mudado, deixando desabrochar um jeito novo de ser, pela força espiritual e abertura à ação do Espírito Santo de Deus. Com a Palavra de Deus, luz para o caminho e lâmpada para os pés, os filhos e filhas do Criador, reencontrarão o sentido da verdadeira paz e da justiça, fundamentais para seguir na direção do amor misericordioso e infinito de Deus pela humanidade.

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte